quinta-feira, 20 de março de 2008

Alguns princípios da I Conferência LGBTT



Mais de 3 milhões de pessoas estiveram presentes na Parada do Orgulho de São Paulo de 2007, o maior evento do gênero em todo o globo

Há três décadas o movimento GLBT no Brasil luta pelo reconhecimento dos direitos – humanos, civis, sociais e sexuais – da parcela da população que não se encaixa no padrão dominante heterocentrista. São gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e outros que cansaram da discriminação e do preconceito e uniram-se para construir uma sociedade mais justa.

Por isso, a convocação da Presidência da República, por meio de sua Secretaria Especial de Direitos Humanos, é um fato que está sendo comemorado por toda a militância. Mas o que há de novo? Quais são seus objetivos e possíveis impactos? E, mais importante, quais são os princípios que norteiam sua construção?

Para tentar responder as questões acima, este Filosofando irá se concentrar na construção da Conferência, que vem sendo feita por órgãos governamentais e pela sociedade civil organizada, mas terá como foco aqueles que mais interessa: o cidadão GLBT.

Ineditismo

Todos os anos, vários encontros GLBT são realizados no Brasil e no mundo. Alguns têm temas específicos, como a prevenção à aids ou o papel do Judiciário. Outros, reúnem organizações não-governamentais, como os congressos da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis, Bissexuais e Transexuais) ou o EBGLT (Encontro Brasileiro de GLBT).

Qual é, então, a especificidade da I Conferência GLBT, cuja data de realização está prevista para os dias 6 a 8 de junho de 2008? Pela primeira vez na história do Brasil, um Presidente da República convoca uma conferência para tratar de questões pertinentes aos cidadãos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Ao convocar a conferência, o governo brasileiro admite que esse segmento da população merece ser tratado de maneira singular e, mais ainda, que necessita de políticas públicas específicas.

A convocação, também, reforça a laicidade do Estado brasileira, uma vez que os principais opositores dos GLBT são líderes religiosos, principalmente católicos e evangélicos. Com isso, o governo afirma que a diversidade sexual deve entrar na pauta das agendas parlamentares, mas a partir de um viés não-religioso.

Na mesma linha de pensamento, ao convocar a conferência o governo legitima os esforços de militantes e políticos no reconhecimento dos direitos GLBT. Movimento similar ocorreu com mulheres e negros, que após suas primeiras conferências nacionais (em 2004 e 2005, respectivamente) puderam verificar avanços em diversas áreas que garantem seus direitos. No caso das mulheres, a aprovação da Lei Maria da Penha é um bom exemplo.

Gênero estruturante

O tema central da conferência é "Direitos Humanos e Políticas Públicas: o caminho para garantir a cidadania de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais". O evento vai contar com 60% de participação da sociedade civil e 40% participação do governo. Participarão cerca de 700 delegadas/os, mais observadores e convidados, nacionais e internacionais.

Os delegados serão eleitos em cada um dos estados da federação, que deverão realizar pré-conferências entre 15 de fevereiro e 15 de abril. Uma comissão organizadora Nacional (composta paritariamente com representantes de diversos ministérios e das entidades nacionalmente organizadas do movimento GLBT) definirá o texto-base e dará apoio à organização das conferências estaduais.

Tanto as pré-conferências quanto à conferência precisam apresentar igualdade de gênero entre os representantes da sociedade civil nas comissões executivas. Ou seja, metade deve ser do gênero masculino, e a outra metade do feminino. Por questão de eqüidade, caso a comissão seja formada por número ímpar de representantes, que impossibilite que a divisão entre gêneros seja metade-metade, será o gênero feminino que receberá mais integrantes. Isso é uma forma de diminuir a defasagem e a desvantagem históricas das mulheres e, por tabela, envolver mais travestis e transexuais.

Mas, se a conferência é G, L, B, T, por que não se constituírem comissões formadas por representantes das diversas identidades? Ou seja, por que, por exemplo, não se escolher um gay, uma lésbica, um/uma bi, um/uma travesti e/ou um/uma transexual? Segundo Julian Rodrigues, da Comissão Organizadora Nacional da Conferência explica que "do ponto de vista teórico, fazer política afirmativa através da 'sopa de letras' traz vários problemas, por misturar bananas com laranjas. Ou seja, trazer letras que dizem respeito à orientação sexual junto com letras que dizem respeito às identidades de gênero".

Só para lembrar, quando se fala de gays, lésbicas ou bissexuais, refere-se a orientações sexuais, à escolha de parceiros do mesmo sexo, do sexo oposto ou dos dois. Já quando se trata de travestis e transexuais, está-se remetendo à identidade de gênero, masculino ou feminino.

Para Julian, o recorte decisivo nos problemas que advém da orientação sexual diversa do modelo heterocentrista é o gênero. "Uma mulher bi, por exemplo, é mais discriminada que um homem bi. No caso em questão, o patriarcado fala sempre mais alto. Gays são vítimas do machismo. Portanto, quando falamos em gênero estruturante, entendemos que as mulheres transexuais, são mulheres, e que há várias feminilidades e várias masculinidades".

O debate sobre o gênero como estruturante das questões GLBT são relativamente novas no Brasil, mas já antigo no movimento internacional, segundo Beto de Jesus, da International Lesbian and Gay Association. A política identitária, baseada nas "letrinhas", teve seu lugar no movimento GLBT nos anos 1990, mas agora não dá conta das demandas do momento. "A segmentação cumpriu um importante papel, mas agora, tem atrasado nossa luta e nossa capacidade de refinar conceitos e entender a função estuturante do patriarcado na construção da heternormatividade", explica Julian. "A luta pela emancipação humana e pelos direitos humanos não é uma luta pelas reivindicações de x, mais as de y, mais as de z, mais as de w (e mais as de qualquer letra nova que possa surgir a qualquer momento). Nossa luta é geral. Principalmente contra o racismo, o machismo e a homofobia. Isso nos une mais do qualquer especificidade de segmento a, b, ou c".

Quando, por exemplo, um estudante é chamado de "mariquinha" pelos colegas de sala, está se reproduzindo a misoginia, o machismo e o sexismo. Não é, portanto, apenas um comportamento contra gays, mas também uma desvalorização do feminino e a associação à masculinidade como centro de força e dominação.

"Ao garantir que 50% das delegadas/os tenham identidade de gênero feminina, estamos, simplesmente, avançando, e muito! Estamos reconhecendo que mulheres trans são, sobretudo, mulheres. Estamos reconhecendo que as travestis, embora tenham identidades complexas e até cambiantes, têm, sobretudo, identidade femininina, e têm, portanto, direito de alterar seu registro civil entre outras questões. Estamos reconhecendo que homens transexuais são homens, e devem nos ajudar a discutir outros modelos de masculinidades, que não esse hegemônico, autoritário, sexista. Enfim, é um grande avanço, sobretudo se considerarmos que o governo federal concordou com essa nova e progressista abordagem", completa Julian.

Eqüidade

Ao se fazer uma conferência específica para GLBT não se pensa em separá-los da sociedade, delimitando os guetos, nem, ao contrário, em dar a esses cidadãos privilégios em relação aos demais. Por isso, outro princípio estruturante é o da eqüidade.

O texto-base da conferência, que servirá de norte para a elaboração de políticas públicas em diversas áreas, baseia-se em ações governamentais, a serem realizadas em parceria com o movimento e com as organizações não-governamentais, a fim de promover condições justas para todos os GLBT, seja na saúde, educação, cultura, trabalho, ou qualquer outro setor.

Para isso, não basta lembrar que todos são iguais perante a lei, que em termos legais é chamado de isonomia É preciso adaptar as leis para situações concretas – e é isso em que consiste a eqüidade, princípio norteador de outras questões de políticas públicas, como a reserva de cota para negros ou o foco na população economicamente carente nas ações do Sistema Único de Saúde. Negros têm mais dificuldade de acesso às universidades que os brancos. Pobres, menos chances de ter serviços de saúde de qualidade que ricos.

Em outras palavras, o conceito de eqüidade é mais justo que o de igualdade, uma vez diminui as desigualdades que foram historicamente construídas, mas que acabam sendo aceitas como dados "naturais".

De acordo com o jurista Milton Paulo Carvalho Pinto, a eqüidade "não corrige o que é justo na lei, mas completa o que a justiça não alcança". Sem esse princípio, atendo-se apenas à idéia genérica de igualdade, seria beneficiada boa parte da população, mas casos específicos seriam injustiçados. É isso que estará em pauta nos diversos grupos de trabalho da I Conferência.

A amplitude do princípio de eqüidade é enorme. Vai desde a definição de acesso dos GLBT nos serviços públicos até a interpretação de leis. Exige dos gestores públicos, legisladores e demais executivos uma capacidade interpretativa que vincule o conhecimento da realidade (no caso, GLBT) à tomada de decisões justas.

Para participar

Se o leitor sentiu vontade de acompanhar mais de perto esse debate, deve ficar atento: em março e abril ocorrerem as conferências estaduais, preparatórias para a I Conferência Nacional. Nas estaduais, todos podem participar e votar para delegados que os representem na federal. Boa hora para exercitar sua cidadania.

2 comentários:

Anônimo disse...

Estou muito orgulhosa desse novo espaço de debate e discussão. O layout está lindo, bem a cara do Marias!

Beijoo

COLETIVOLÉSBICASNEGRAS-CANDACE-BR disse...

Boa noite!
O Blog do Marias está ótimo, mas gostaria de deixar um alerta, para que aja eqüidade nesta Iª CNLGBT, será necessário que a Comissão organizadora aceite esta reivindicação da sociedade civil, mas o mais´incrível que os representantes da sociedade civíl foram os primeiros a questionar esta ação de representatividade, no minímo estranho e mais estranho ainda existir uma rede afro lgbt, que permitiu ter representação nesta organização com apenas 02 pessoas enquanto outras redes com 04,mais estranho ainda é abglt com 14 representações.
se liguem e façam valer sua participação e suas opiniões.
leila lopes
coordenadora nacional
coletivo nacional de lésbicas negras feministas autônomas - candace BR.