sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Um olhar sobre os direitos humanos. Pena para as mulheres!


Por Carla Akotirene*

A Penitenciária Feminina de Salvador é um lugar sombrio, inóspito, de aspecto infectado e corrompido pela loucura, esterilização, desconfiança, tratamento diferenciado e relações de poder mais desfavoráveis às mulheres negras encarceradas. Um ambiente de privilégios para as mulheres brancas, consumo aberto de drogas, subalternização existencial das mulheres negras e visões deterministas cujas normas buscam deteriorar identidades, recalcar ideais e fortalecer a crença de que as mulheres negras são fracassadas sociais.

Nesta unidade prisional não há celas individuais, salubres, aparelho sanitário e lavatórios dignos. Da mesma forma não se constata seção equipada para gestantes e parturientes. Algumas mulheres reclamam que desconhecem o paradeiro dos seus filhos. No dias do “baculejo”, mecanismo administrativo utilizado para localizar celulares, armas ou drogas que possivelmente estão escondidos nas celas, acontece com regularidade eventos que podem servir de parâmetro acerca das relações raciais; na localização de um celular observou-se o corpo técnico não-negro comunicar às internas que determinada presa, negra, pele bastante escura era a autora da “denuncia”. A partir daí se inicia um ritual de violência física, psicológica e desumana à mulher negra; alguns funcionários se indignam, outros se regozijam com o sofrimento das mulheres e a inevitável quebra de vínculos afetivos instalada após o baculejo.

Na “rampa”, local onde é servida a alimentação, a comida é de péssima qualidade. Durante a observação participante foi verificada a presença de baratas no panelão de suco artificial de uva e de framboesa. As internas recorrentes a minha presença para exibir a galinha servida semicrua, as em dieta reclamam que já fazia um mês só recebendo uma manga-rosa como refeição. Neste contexto, as mulheres negras jovens são porta-vozes das mulheres mais velhas. Independentemente de cor e da nacionalidade, as jovens gritam os direitos das idosas, ao menos tempo se intimidam para falarem dos seus direitos, contudo exigem que substituam as frutas fornecidas com bichos às internas mais “envelhecidas”.

Referente a outros abusos, as mulheres encarceradas trocam favores sexuais com os funcionários em troca de leite em pó, achocolatados e similares. As funcionárias vendem roupas, calçados, perfumes e bijouteirias super faturadas às internas, estas por sua vez, fazem qualquer coisa para conseguir dinheiro e quitar seus débitos. Do lado de fora, algumas egressas do sistema prisional são proibidas de fazer visitas às ex-companheiras de cárcere, inviabilizando a manutenção de vínculos afetivos. As vozes masculinas ecoam nos corredores alertando da “tranca” e das represálias provenientes da indisciplina com os horários estabelecidos.

No lado de fora do Complexo Penitenciário causa angústia verificar um número pífio de parentes e familiares das mulheres encarceradas nos dias de visita. .Alguns familiares vêm de bairros distantes, gastam transportes, vestem a melhor roupa que dispõe, mas são interpelados na portaria devido ao vestuário inapropriado. Outros poucos familiares, a pedido das internas não conseguem realizar a visita. Estas internas ficam constrangidas com a relação homoafetiva em exercício, receosas da avaliação de seus familiares, daí dispensam a visita. Há familiares que não voltam após a revista vexatória a qual são submetidos. Compreende-se a importância deste procedimento para coibir práticas contraventivas na prisão, entretanto, a forma como se processa esta medida é humilhante e imoral.

A diretoria da penitenciária sempre caucasiana, assim como as repartições de maior autonomia e prestigio administrativo. Quando as mulheres negras entram para audiência com a diretoria, entram cabisbaixas, subalternizadas espiritualmente, escondem as unhas, passam a mão levemente nos cabelos para parecerem mais arrumadas e, referem-se à diretoria com nobres pronomes de tratamento. As mulheres brancas não sofrem rigor burocrático para terem audiência, eximem-se de tratamento formal a ponto de nos corredores haver uma junção de ‘identidade loira’, sem distinção da situação institucional de cada uma delas. Os cabelos se parecem, as palavras e gostos se parecem e a motivação para àquela situação de encarceramento não perdurar soa uma conseqüência cabível a afinidade étnica.

Constata-se a transferência da exclusão racial que levou as mulheres negras não serem aproveitadas no mercado de trabalho, rejeitadas nas funções produtivas através da punição. Às mulheres negras ficam preferencialmente com o trabalho de limpeza do ambiente, são obrigadas a carregar garrafões de 20 litros de água mineral para as repartições. Diferentemente, as mulheres não-negras na sua maioria trabalham nas fábricas instaladas na penitenciária. As mulheres socialmente brancas ou de epiderme clara auxiliam nas funções administrativas, são tratadas com respeito, horizontalidades, constantemente agraciadas, elogiadas, beijadas, acarinhadas e chamadas nominalmente. Não causa estranhamento o fato de a remissão da pena acabar favorecendo exatamente quem consegue estes postos de trabalho da penitenciária, como é sabido este aspecto legal beneficia com diminuição da pena a condenada ao regime fechado ou semi-aberto remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena, para aquisição de livramento condicional ou indulto.

Portanto, o racismo é uma tecnologia de poder tão potente a ponto de permear o espaço prisional o qual teoricamente mulheres brancas e negras deveriam estar em condição de igualdade pelo comportamento delituoso. Institucionalmente, existe a visão de que as mulheres brancas antes de serem criminosas são brancas e isso é um capital para elas dentro da instituição; as mulheres negras são criminosas exatamente porque não são brancas, por isso são mais vigiadas, punidas e desperdiçadas pelo sistema produtivo dentro da prisão, conseqüentemente da remissão de pena, doravante anuladas pela educação no sistema penal e fadadas ao fracasso social.

É preciso entender que a prisão é um grande engodo do Estado para suprimir a parcela populacional que não comporta nas relações capitalistas. Neste sistema de punição a mulher negra criminosa é uma personagem cujo papel latente é a transgressão, visto que socialmente encontra-se mais vulnerável ao crime, por sua vez a punição destinada, objetiva oxigenar a sociedade, disciplinar por via da repressão, zelar deste modo à hegemonia da burguesia branca e plena subalternização da pobreza negra. Este racismo institucional, não pode ser analisado como fracasso da prisão em prover o serviço de ressocializaçao, pois é um mecanismo exitoso na medida em que encarcera as mulheres negras, outrora indesejáveis ao mercado de trabalho, acolhidas pelo tráfico de drogas, crime hediondo, o qual elas terão que cumprir obrigatoriamente em regime fechado. Por fim, mulheres cujos filhos também foram categorizados como adolescentes em “conflito com a Lei” e tão logo serão assassinados pela policia e outros grupos de extermínio.

*Carla Akotirene é Assistente Social, articuladora nacional de negras jovens feministas, coordenadora do Fórum Nacional de Juventude Negra.

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