120 anos abolição da escravatura: da cachaça ao etanol
Deise Benedito*
Cento e vinte anos pós abolição, não temos o que comemorar nem celebrar. O que nos resta é apenas refletir sobre alguns fatos que se repetem, nos mesmos moldes do período da escravidão!
Estamos diante de um novo ciclo da mesma cana de açúcar que adoçou os pensamentos e enriqueceu os bolsos da coroa portuguesa – marco fundamental da economia nos primeiros tempos da escravização de africanos no Brasil. 120 anos depois da pseudo-aboliçã o, aqui, em São Paulo , estão transformando homens e mulheres negras descentes de africanos em “novos” protagonistas da agonia dos canaviais paulistas em função do enriquecimento do mercado de capitais dos novos fazendeiros de cana de açúcar, tendo, agora, como moeda o etanol.
O novo ciclo da cana de açúcar nas fazendas do interior de São Paulo está impondo uma “mesma” rotina cruel, desumana e degradante aos cortadores de cana de açúcar: jovens, mulheres e homens desprovidos de políticas publicas se deslocam como seus antepassados nos dias 15, 16, 17 de maio de 1888, em busca de trabalho para a sobrevivência nas fazendas de café do interior de vários estados, para trabalharem por um prato de comida!
Para muitos estudiosos, atualmente a vida dos jovens homens e mulheres nos canaviais paulistas se equipara às condições que viveram nossos ancestrais, no seu lado mais perverso, gerando novos empregos onde a movimentação interna da economia deve exportar 7 bilhões de dólares só com o etanol. Mas, obviamente, não se ouve falar em “participação nos lucros”!!! E, bem sabemos, parte desse montante de lucro não será repassado para os cortadores de cana. Nem tão pouco será destinado à implementação de políticas públicas para a população negra e pobre oriunda desses municípios dos rincões do Brasil que fornecem a mão de obra barata e desqualificada para “tecnologia de ponta”. Serão 7 bilhões de dólares; tudo conforme no tempo da escravidão oficial.
O super-esforço no trabalho do corte da cana tem levado à morte centenas de jovens, homens e mulheres, por exaustão! Tudo exatamente como há mais de 120 anos! Agora, os fazendeiros/ usineiros assustados com a repercussão das mortes dos “trabalhadores do corte da cana”, estão adotando “outras” formas de contratação (segundo a pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva, professora e livre docente da UNESP). A busca de maior produtividade obriga os cortadores de cana de açúcar a colher até 15 toneladas de cana de açúcar por dia. Tal esforço físico, encurtando o tempo de vida dos trabalhadores, provoca a geração de mais empregos!!!
Na década de 1980 e 1990, o tempo que o trabalhador ficava nesse setor era de 15 anos. A partir do ano 2000, segundo o historiador Moraes Silva, a vida “útil” do trabalhador é de 12 anos. Com esse tempo, o “trabalhador começa a ter problemas sérios de câimbras, tendinite e fortes dores na coluna”.É possível imaginar um Brasil que em pleno século XXI vende aviões para os Estados Unidos da América e para outros países; que exporta tecnologia; inteligência de ponta na mecatrônica; que investe na mineralogia; com jovens vivendo nas mesmas condições que seus tetravôs, tataravôs, bisavôs, avôs? A vida dos imigrantes jovens cortadores de cana que vêm das regiões do interior do Piauí e do Maranhão não difere da situação de vida que viveram nossos ancestrais. Com isto se comprova que a após a abolição da escravatura nada mudou para a população negra. Segundo o historiador Jacob Gorender, o ciclo de vida útil dos escravos na agricultura era de 10 a 12 anos, em 1850; isto é, antes da proibição do tráfico de negros provenientes do continente africano.
Segundo Maria Aparecida de Jesus Pino Camargo, um jovem trabalhador anda de 8 a 9 km a pé por dia para chegar ao canavial. Mesmo assim se tem obtido alguns avanços, quando existe a fiscalização do Ministério Publico do Trabalho que exige dos usineiros exames admissionais. Porém, também se sabe a respeito do uso de substâncias entorpecentes, como a cocaína e o crack, nas lavouras, para “dar pique”, além de assassinatos por dívidas pelo consumo da droga e, ainda, podendo ser presos e condenados por tráfico de drogas ou se enveredando pelo submundo do crime para sustentar o vício.
As condições de vida, em geral, são subumanas com alojamentos sem saneamento básico, luz, água potável; apenas uma cama “solteira”, um pequeno fogão, um aparelho de TV e, muitas vezes pagando aluguel de R$ 120,00 por mês contra um “salário” de R$ 500,00.
Nesses meandros, prevalece a “lei da sobrevivência” onde “só os fortes sobrevivem”: aqueles que conseguem cortar de 100 a 120 m de cana por dia e que conseguem ganhar até R$ 800,00 por mês. As mulheres também estão no corte de cana: são jovens, semi-alfabetizadas, muitas vezes chefes de família que têm a incumbência de preparar o jantar e a marmita do dia seguinte. Elas chegam para o corte por volta das 4 horas da manhã e ficam expostas ao trabalho até às 16 horas.
A expansão da cana de açúcar e do mercado de etanol estão provocando uma nova migração para o estado de São Paulo. Este, como sabemos, um dos redutos mais resistentes a abolição da escravatura (1888), tendo a cidade de Campinas como a última cidade a abolir o trabalho escravo. Agora, há um fluxo proveniente de Minas Gerais e da Bahia, do Maranhão e do Piauí. Maria Aparecida Moraes Silva pesquisou estes novos “quase cidadãos” que sem ter onde trabalhar, sem a cultura regional do babaçu, são obrigados a vir para São Paulo cortar cana. Muitos são “expulsos” pelo cultivo da soja, quase nenhum é herdeiro de fazendeiro ou mesmo de produtores.
Por que estaria eu, nesse texto, escrevendo com o foco na juventude do canavial? Por não poder mais admitir tantas omissões e desrespeito com relação à população negra e pobre deste pais. É inadmissível que o Estatuto da Igualdade Racial fique sendo tratado como algo sem qualquer prioridade, quando temos jovens morrendo na região urbana, pelo extermínio, e na zona rural, pela exaustão! Quando vemos empresas receberem milhões e milhões de recursos dos cofres públicos e não retornarem para ações relevantes para sociedade, principalmente com foco na juventude. Quando vejo que no último levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), do Ministério da Justiça, o Brasil já conta com uma população prisional de mais de 428 mil presos (quase meio milhão de pessoas). Nos últimos quatro anos, com recursos do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), foram criadas mais de 22,7 mil vagas no sistema prisional. Mas não foram preenchidas vagas em número igual com jovens da população negra e indígena nas escolas técnicas!
E o que pensar quando temos a informação de que o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) deverá criar 46,8 mil novas vagas nos presídios e penitenciaria (41,3 mil para homens e 5,5 mil para mulheres) até 2011!
Assim como há 120 anos atrás, hoje os debates envolvem os “anti-cotas” por parte da mesma elite temerária quando se exigia indenização do estado pelos prejuízos causados por uma “liberdade” de faz-de-conta. A mesma elite repugnante que, hoje, é contra as cotas, contra qualquer ascensão para a população secularmente submetida ao julgo dos dominantes. Se naquela época tínhamos o a elite repugnante, assustada, temida que usava os jornais para manifestar suas posições anti-abolicionistas , temos hoje o monopólico da midiático racista que nos bombardeia de várias formas, desde a preocupação com nossas características físicas até o barulho do berimbau que fere os ouvidos mais sensíveis da “fina flor” da hipocrisia da elite baiana e alhures!
*Presidente da Fala Preta Organização de Mulheres Negras
Membro do Forum Nacional de Mulheres Negras
Membro do Forum Nacional de Direitos Humanos
3 comentários:
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